McDonald's, água com açúcar e uma pitada de ansiedade


Quando eu tinha mais ou menos uns 8 anos, eu lembro de estar sentada no sofá da sala da minha casa, na qual morava com meus pais e meu irmão, e estar trocando de canais buscando um filme para assistir. Já era de noite e eu tinha ficado sozinha com meu irmão na sala, enquanto nossos pais assistiam alguma coisa no quarto. Visto que o ano era 2004, eu acredito que eles deviam estar assistindo Da Cor do Pecado - um clássico no Brasil no começo dos anos 2000. Não há brasileiro que tenha vivido os anos 2000 e não tenha escutado sobre a novela. Ou há chances também que eles estivessem assistindo um dos episódios de Os Normais. Era uma das séries favoritas deles naquela época (na época que séries nem eram conhecidas e categorizadas como séries assim como são hoje). 

Enfim, eu e meu irmão estávamos bem tranquilos na sala. Normalmente nós dois assistíamos TV juntos à noite. Nós íamos para o quarto dele, nos sentávamos na cama dele e ligávamos aquela TV pequena de tubo gigante. Eu gostava de chegar perto da TV durante os intervalos porque o meu cabelo ficava arrepiado e grudava na tela (se você está se perguntando: sim, isso era o que as crianças entediadas dos anos 90 faziam). Os programas que mais assistíamos de noite eram Kenan & Kel e Pokémon. Mas algumas vezes, por algum motivo, a gente preferia ficar mais tempo na sala e buscávamos algo diferente pra assistir. A TV era maior lá. Pegávamos o controle remoto e começávamos a passar todos os canais incessantemente até algo parecer agradável. O que era interessante para nós pode ser bem questionável hoje em dia. A gente gostava muito de desenhos animados, mas às vezes a gente dava uma chance para algo diferente - tipo "Como Se Fosse a Primeira Vez", o qual vimos 50 vezes. Eu gostava de ficar esticada em um canto do sofá enquanto meu irmão ficava no outro. O sofá da nossa sala sempre pareceu gigante para mim quando eu era pequena, mas provavelmente era um sofá de tamanho "grande normal" para adultos. A cor era uma tonalidade azul, tipo a parte mais profunda do oceano ou tipo o céu sem nuvens quando está escurecendo depois do pôr-do-sol. Ou talvez tipo a cor de um mirtilo. Isso - imagina um mirtilo e essa era a cor do nossa sofá. 

Meu irmão clicou trocou impacientemente de canal aquele dia até que achamos um filme que estava começando em algum dos canais que constava na nossa assinatura. O filme pareceu interessante para nós porque era sobre o McDonald's (ou de alguma maneira envolvia o McDonald's). E o Mc era um dos nossos restaurantes favoritos na época. Acredito que nosso raciocínio deve ter sido algo do tipo: é um filme com McDonalds -> McDonald's é bom -> que saudades de comer Méqui -> deve ser um filme bom. Um critério muito complexo de julgamento de filme, ninguém entenderia. Nos acomodamos no sofá e começamos a assistir o filme americano, dublado em português. 

O filme em questão era "Super Size Me". Eu lembro de ter ficado muito impactada com o filme ao longo de toda a história. Talvez tenha sido o primeiro filme desse gênero que eu tenha assistido na vida até então.
Era uma mistura de documentário com drama e investigação. Resumidamente: não é um filme muito apropriado para crianças de 8 anos. Ele basicamente fala sobre um cara que resolve comer apenas refeições do McDonald's por 30 dias para ver como o seu corpo reagiria. A sua intenção era mostrar como o fast-food pode impactar negativamente a saúde. Mais ou menos no dia 20/21 da experiência, o filme mostra que ele começa a ter palpitações no coração e tem alguns episódios que se sente muito doente. Há algumas cenas, onde alguns médicos dizendo que ele não devia continuar fazendo aquilo, mas ele decide insistir até chegar no dia final. Eu me senti muito mal por ele durante todo o tempo e sentia como se as palpitações no coração dele estivessem ocorrendo no meu. Eu me contorcia um pouco no grande sofá azul, mas não pedi para parar de ver o filme em nenhum momento. Quando finalmente terminou, meu irmão se levantou e foi para o seu quarto dormir, mas eu não consegui fazer o mesmo. Por alguma razão esse filme foi um gatilho muito grande e me deixou inquieta. Eu lembro de terminar de ver o filme e correr para o quarto dos meus pais porque não estava me sentindo bem. Eu via tudo um pouco azul (tipo o azul do sofá) e sentia que algo estava errado comigo. O meu coração estava acelerado, as minhas mãos suavam e eu tremia. Ao mesmo tempo que tinha um pouco medo, eu não entendia nada. Por quê isso estava acontecendo com o meu corpo? Será que eu estava morrendo? Será que era assim que as pessoas morriam? Será que era isso que o moço do filme tinha começado a sentir no dia 20/21? 

Os meus pais me acolherem na cama entre eles e tentarem me acalmar. Eles não entenderam o que estava acontecendo - mas eu também não sabia como explicar ou o que falar. Minha mãe se levantou e buscou um copo de água com um pouco de açúcar dentro. Lembro de pegar o copo e ver minha mão tremendo. Eu conseguia ver o açúcar mexendo em redemoinho dentro da água. Teoricamente a água com açúcar acalma - ou pelo menos é o que se dizia no Brasil há uns 30 anos atrás (procurei agora no Google e aparentemente é um mero efeito placebo). Eu tomei a água doce e fiquei tremendo por um tempo abraçada na minha mãe assistindo algum desenho animado. Minha mãe chegou meu pulso algumas vezes - ela colocava o dedo indicador o dedo do meio pressionados na lateral do meu pulso e me olhava preocupada. Os olhos dela fitavam o fundo dos meus. Eu notei que ela estava preocupada. Passados alguns minutos, eu parei de tremer. O suor já não estava mais aparente e o coração se acalmou. Ao que tudo indica, o efeito placebo da água com açúcar teve efeito. 

Eu dormi na cama dos meus pais e acordei na minha cama no outro dia. Me despertei, pensei sobre o que aconteceu na outra noite, mas efetivamente não dei muita relevância. O meu dia seguiu normalmente. Fui tomar café da manhã com meu irmão na cozinha, fui para a escola de carona com meu avô e eventualmente até consideraria ir no shopping mall da cidade depois da aula para comer um McDonald's de janta, se alguém me convidasse. No entanto, inconscientemente (ou até mesmo um pouco consciente) o medo de passar por aquilo de novo me perturbou por muito tempo. Várias vezes antes de ir dormir eu pensava que talvez eu fosse começar a tremer e meu coração iria acelerar. E que talvez de novo haveria uma chance que eu iria passar mal e - quase - morrer. 

Essa situação que aconteceu no dia que assisti o "Super Size Me" foi um dos primeiros momentos da minha vida que me marcaram porque eu achei que estava prestes a morrer. Eu não sabia daquilo e também não entendia a extensão do incidente muito bem, mas aquele foi na verdade o meu primeiro ataque de pânico de muitos que ainda aconteceriam ao longo da minha vida. Eu tinha 8 anos em 2004 e fui apenas entender a profundidade daquilo em 2017 quando comecei a fazer terapia e fui diagnostica com TAG (transtorno de ansiedade generalizada). Ter um ataque da pânico é sempre muito difícil e muito complexo. Porém, ter um ataque de pânico com oito anos faz tudo ser ainda mais aflitivo. 

Um dois maiores problema da ansiedade é que ela é um ciclo que se consome. Se você é uma pessoa ansiosa e tem um momento que te desestabiliza de alguma maneira, o ciclo automaticamente inicia e se alimenta. O mal-estar momentâneo se torna algo maior justamente porque a ansiedade existe. É um efeito bola de neve - porém no sentido mais tenebroso que uma bola de neve possa representar. Nesse episódio do Super Size Me, o meu eu de 8 anos deve ter ficado um pouco ansioso por ter associado o mal-estar do ator com o fato de que eu também comia McDonald's de vez em quando. Talvez na minha cabeça alguma associação tenha ocorrido que me fez concluir que eu também poderia morrer. Ou talvez o filme só tenha me tocado porque mostrou que as pessoas são muito vulneráveis. No fim das contas, todos poderiam passar mal e morrer. E aquela ideia de perder alguém e/ou ser abandonada me assustava muito. 

A minha vida por muitos anos se resumiu muito em aprender a lidar com a ansiedade. Os primeiros anos, na verdade, foram mais sofrendo com a ansiedade do que aprendendo com ela. Eu fui começar a aprender sobre a ansiedade muito mais tarde, quando ela começou a ter impacto na minha vida social e profissional. Mas até esse momento chegar, muitos eventos parecidos ocorreram que foram muito difíceis de lidar, mas também interessantes de se analisar. Interessante porque depois que você aprende sobre a ansiedade e sobre os gatilhos que te afetam, você pode ver os ataques de pânico de uma maneira diferente. 
Por muitos anos eu nem sabia que esse incidente na verdade tinha sido um ataque de pânico. Fui apenas descobrir isso depois de compartilhar esse momento com minha terapeuta, que por sua vez me informou que aquilo tinha sido de fato um episódio de pânico. 

Eu inicio esse blog hoje com a ideia de compartilhar um pouco da minha história descobrindo a ansiedade, lidando com ela ao longo dos anos e como eu aprendi a acolher ela dentro de mim (através de muita ajuda da minha ex-terapeuta - e agora amiga). Espero que isso possa ajudar algumas poucas pessoas a se sentirem melhores e acolhidas. Espero que isso desperte um sentimento de empatia!


Comentários